Ocorreu ao fim de novembro de 2019 a décima quarta edição do Internet Governance Forum (IGF) das Nações Unidas (ONU), evento anual que reúne boa parte dos especialistas e atores relevantes da área de Governança da Internet em um único espaço para o debate de questões contemporâneas, na busca do avanço de cooperação e coordenação em escala global. Esse ambiente opera dentro de uma premissa multistakeholder (ou multissetorial), na qual estão em pé de igualdade os governos, empresas, acadêmicos e sociedade civil. Não existe a expectativa de geração de normas de maneira direta dentro do contexto da reunião, mas o fórum possui utilidade como um barômetro de posicionamentos e pensamentos em escala global.

Entre muitas linhas de debate, o tema da “soberania digital” preponderou em discussões entre indivíduos de diferentes regiões e especialidades. Há uma complexidade inerente em se pensar no digital enquanto espaço de exercício de soberania, pois a forma como a Internet é organizada – descentralizada, mas dependente de recursos sediados em locais físicos – pode levar a analogias diferentes. Por um lado, o digital pode ser tratado como análogo ao espaço aéreo ou marítimo no qual o Estado pode legitimamente exercer controle pleno, mas é também plausível sua compreensão como território extraplanetário ou de alto mar, nos quais a soberania é difusa.

No debate mundial sobre tecnologia, convocar o tema da soberania é como puxar uma carta coringa que derruba todos outros argumentos. Essa era uma posição muito adotada por China e Rússia, mas o emprego do conceito está se espalhando pelo mundo ocidental rapidamente. Quando olhamos para o que cada região elenca como motivo central para se utilizar da soberania, vemos que China e Rússia possuem exceções de controle social, EUA de segurança nacional, e a União Europeia de privacidade. No fim, todos estão dispondo de algum argumento para justificar suas ações que, por afetarem a Internet, quase sempre acabam tendo um efeito transnacional.

A importância dessa temática já se fez clara logo na cerimônia de abertura do evento durante as intervenções do Secretário-Geral da ONU, António Guterres e da Chanceler alemã Angela Merkel. Guterres falou abertamente sobre a emergência da camada de conflito digital entre Estados, afirmando que essa já não é mais uma preocupação especulativa, mas sim algo que está sendo observado globalmente e que soluções precisam ser pensadas dentro dos organismos da ONU para mitigar seus efeitos.

Já Merkel partiu para uma tentativa de definir a soberania digital dentro de seus termos, tratando como algo que não deve ser relacionado ao protecionismo ou a censura, mas sim à autonomia do indivíduo e da sociedade em suas capacidades de determinar como se deve desenvolver a Internet. Argumentou que soberania não é algo atrelado ao isolacionismo, e que os Estados têm de trabalhar junto com a comunidade maior presente no fórum para fazer a manutenção de uma Internet única, pois essa seria a força real da rede.

Merkel criticou ainda a preferência dos Estados, os quais definiu como “não-democráticos”, de criar versões muradas da Internet e provocou dizendo que a liberdade de comunicação é algo irritante para esses. Além disso, não abriu mão das diretrizes europeias que buscam diminuir o poder das chamadas Big Techs (em sua maioria estadunidenses, como Google e Facebook) que possuem influência desproporcional na rede, afirmando que a proteção dos dados dos cidadãos e similares é um exercício de soberania válido.

Em pontos variados dos debates sobre soberania, discutiu-se o protagonismo das Big Techs. Isso porque estas estão exercendo funções que em alguma medida seriam estatais, como policiamento, controle de dados, e, mais recentemente, mirando maior controle de sistemas de pagamentos para a criação de moedas próprias, como no caso da Libra da Facebook. Em oposição, os atores estatais estão reagindo com leis cujos efeitos transcendem suas fronteiras, como foi o caso da General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia. Ao buscar a proteção dos dados dos europeus, essa regulamentação inspirou legisladores de todo o mundo a se concentrarem no tema, influenciando inclusive o texto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais do Brasil.

É relevante lembrar que a maioria das empresas digitais de maior destaque do mundo ocidental são originárias dos Estados Unidos, com quase nenhuma sendo originária da União Europeia. De modo geral, as gigantes estadunidenses só possuem competição forte em países nos quais a Internet é mais controlada, como é exatamente o caso da Rússia e da China, nas quais empresas locais assumem protagonismo devido ao apoio estatal que recebem em troca de se manterem alinhadas ao pensamento governamental.

As reflexões que esse tema traz nos forçam a considerar tanto uma camada física e tangível quanto um plano digital abstrato ainda invisível para muitos, camuflado dentro do jargão imperfeito de “nuvem”. Há uma grande reticência no estabelecimento de diretrizes reais que gerem normas internacionais definindo os limites da soberania digital, mas esse é um processo que aos poucos vai se mostrando necessário. Após o IGF, o primeiro “UN Open-Ended Working Group on Developments in the Field of ICTs in the Context of International Security” (OEWG) ocorreu em Nova York com o objetivo de congregar os Estados em um debate preliminar sobre o tema, estando presentes inclusive representantes de todos membros do Conselho de Segurança. Ainda é cedo para se tirar qualquer conclusão da reunião preliminar, mas sua mera ocorrência já é uma indicação da inevitabilidade do debate que observaremos nos próximos anos.